quarta-feira, 9 de setembro de 2009

O homem sem passado







Imagina só que em um dia você acorda sem saber quem é. Imagina que em um dia perde todas as lembranças armazenadas na memória e não reconhece nada nem ninguém de sua família ou meio. O que faria? Trataria de refazer seu passado para construir seu futuro ou romperia com as lembranças impostas por desconhecidos? Este é o problema que enfrenta David Fitzpatrick, um jovem inglês que perdeu em 2005 a memória por "fuga dissociativa" e está lutando agora para construir um futuro obviando seu passado.

O que segue é um relato em primeira pessoa baseado em fatos reais e consumados de uma história impressionante pelo insólito de seu argumento. Um desafio à memória e ao tempo de um jovem de 25 anos que luta para encontrar-se a si mesmo sem depender de lembranças que não reconhece.
A história começa em 4 de dezembro de 2005 em um trem. Aquela tarde David sofreria uma das mais raras formas de perda de memória catalogadas na história da medicina:



A história.
Ouço pessoas... onde estou? Minha cabeça dói demais. Não entendo esta amargura. Estou muito desorientado e sinto que estou próximo da morte. Quero vomitar! Preciso de ajuda urgente...

Alguém me acaricia. Todos fazem perguntas. Sinto me febril. Parece que tive algum tipo de acidente. Muita gente me olha e tenho pânico. Não vejo sangue. Será grave? O que aconteceu? Estou aturdido e molhado de suor, minha cabeça gira parada. Vertigem, muita vertigem. Busco descanso.

- "Olá, qual seu nome?"

- "Não... não consigo me lembrar. E você?"

- "Eu sou William Q. Sou médico do 'Kings College Hospital', em Londres. Você foi encontrado próximo do hospital sem nenhum documento".

Não recordava absolutamente nada. Tentar desviar minha mente à memória era a maior das torturas. Um choque elétrico percorria minha medula a cada tentativa. Só queria descansar.

Passei vários dias em sonolência induzida. Um "sonho doce" carregado de disparos psicodélicos de pensamentos incoerentes. Distinguir a realidade da fantasia onírica era impossível, um exercício de tormentas que me fazia sentir vivo, mas dentro de um inferno de um esforço descerebrado.

A equipe médica fez-me inumeráveis testes. Uma infinidade de perguntas contínuas e exercícios visuais de psicologia cognitiva. Minha cabeça começava a funcionar, mas nem assim recuperei minha capacidade de comunicação. Um grande muro parecia obstruir a fala me deixando impossibilitado de unir o pensamento à palavra.

Pequenas lembranças perfuravam o oco de minha memória. Imagens incoerentes de um universo que não reconhecia. O exercício proposto então pela equipe médica era unir estas "fotografias neuronais" com algum vínculo que permitisse encontrar uma pista que conduzisse a minha identidade. Eu só via campos verdes.

- "Que é isso?"

- "Um das ruas da cidade. Reconhece algo?"

- "Verde. Isto é verde. Verdade?"

- "Sim e, é Hyde Park, o maior parque da cidade."

- "Acho que já estive num lugar verde assim..."

Era quarta-feira. Os médicos fizeram questão de me mostrar revistas esportivas. As imagens se misturavam na ante-câmara de minha memória, pedindo licença urgente para um reconhecimento que era impossível. Mas tinham cores, cheiros e formas que me conduziam ao sossego. Por aí canalizei meu julgamento.

- "Futebol! Eu sei jogar futebol".

Quatro dias depois consegui visualizar o trajeto a um suposto campo de treino e à casa de meu treinador. A memória de um itinerário não era mais que uma lista ordenada de fotografias de um trajeto esquecido. Eu falei sobre estas fotografias para alguém com julgamento ponderado que modelou ordenadamente meu percurso imaginado. Um treinador estava então a caminho do hospital.

- "Olá David. Sou Mike Rook seu antigo treinador e o pai de seu melhor amigo: Ross. Lembra de mim?

- "Desculpe, não sei quem é David e muito menos quem é Mike Rook".

A espera foi tensa. O resultado, desolador. Pela primeira vez senti essa sensação tão angustiante. Olhos brilhantes, úmidos e amáveis forçavam uma obrigada cumplicidade não correspondida. Um rosto alheio, desconhecido, mostrava um carinho finalmente repudiado. Então confirmei o que até então previa: não reconhecia pessoas.

Através do treinador localizaram minha mãe, uma tal Jeanette. Seu abraço impassível produziu-me o calafrio mais gélido que já havia sentido, seguramente, em minhas duas vidas. Violado por um carinho que não sinto, Jeanette me apertou como se fosse carne de sua carne. A compaixão foi o máximo que consegui sentir por ela. Ninguém me compreende quando conto isto.

Um desfile de pessoas que diziam me conhecer se misturaram com minha família: os médicos. A vergonha e o retraimento iam minando minha paciência. Todos me reconheciam, mas ninguém me compreendia. Queria sair daquela orgia de carinho inequívoco, mas impossível. De passados sem raízes, de beijos sem impressão. Queria ser livre para sentir, para reconhecer-me e encher os espaços brancos de minha memória a minha maneira. Precisava de tempo.

- "Qual sua cor favorita?" - "Não o sei".

- "Qual seu filme favorito? - "Não lembro".

Descobri que tenho também uma filha de seis anos. Com ela não sinto o mesmo que com o resto do planeta. É uma sensação especial amparada pela intuição. Talvez porque seus olhos sinceros não estão constantemente vidrados. Quiçá porque quando me olho no espelho vejo um pouco dela. Apesar de tudo estou começando agora à amá-la.

Todo meu futuro está baseado agora na confiança. Confiança em quem não conheço, confiança no que me contam sobre mim, de como realmente era. Mas a princípio resulta difícil confiar nas pessoas e nas sua versões contraditórias. É complicado e incômodo ser quem dizem que sou sem poder sentir que sou eu mesmo. Mas o que é impossível é não contrariar quem espera um abraço, um beijo, um gesto daquele que um dia os amou, mas que morreu com sua memória naquele 4 de dezembro.

Neste tempo viajei muito, fui passear pelos locais da minha infância, visitei meu antigo colégio, vi os troféus e vídeos de minhas melhores partidas no esporte que agora sou um perna-de-pau. Posso jogar, tenho o mesmo corpo e as mesmas habilidades, mas perder a memória emocional influiu diretamente na maneira de entender o futebol. Os médicos dizem que quanto mais antiga seja a lembrança mais possibilidades há de que aflore com as novas experiências. Mas é desanimador que, até agora, não me lembre de nada.

O pior de tudo tem sido se dar conta do dano -agora involuntário- ocasionado por um passado turvo e violento. Desmascarar minha parte mais escura e lúgubre à medida que escavo no esquecimento alheio tem sido muito doloroso. Felizmente já não me atormenta porque não me pertence. A vertigem de que se reproduzam condutas traidoras existe, mas agora já não me reconheço como aquele que maltratou à mãe de minha filha e foi expulso da casa dos amigos, entrando em uma espiral de autodestruição, alcoolismo e solidão.

Agora sou livre e verdadeiro dono de meu sucinto, mas já digno, passado. Minha vida agora resume-se a começar já que o destino resolveu me me dar uma nova oportunidade.

Estou de volta. Agora sou uma pessoa melhor.

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